A antidemocracia corinthiana
Opinião de Victor Farinelli
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Poucas coisas foram tão vergonhosas no passado recente do Corinthians quanto o ocorrido nesta terça-feira, 30 de julho de 2019, quando o clube decidiu jogar sua tradição no lixo, ao tirar do Memorial a histórica camiseta do Gustavinho, perguntando quem matou Marielle Franco, cedendo à absurda pressão de um grupinho de gente com poder que não entende o que o Corinthians significa.
Gente que tampouco entende o que é a política, e que provavelmente pensa que se resume a meras e baratas preferências partidárias e ideológicas. Não são capazes de dimensionar o que o Corinthians representa no Brasil e no mundo. Talvez tenham lido sobre a nossa história, mas nunca compreenderam que aqueles trabalhadores negros e pobres de 1910, quando fundaram um clube para gente que não tinha acesso às reservadas agremiações dos endinheirados de São Paulo, tomaram uma decisão (sim, queiram ou não) política!
Um punhado de conselheiros que fazem parte de uma classe social que não é a do povão pobre que sustentou e sustenta a grandeza deste clube nas arquibancadas do Brasil há 109 anos. Mais de um século no qual o Corinthians honrou o juramento dos seus fundadores de fazer um clube para o povo, e se consolidou como válvula de escape dos que mais sofrem, e que lutam por mais democracia, mais justiça e inclusão social, princípios que, em tese, deveriam ser igualmente defendidos por todos os espectros políticos, ainda mais em um país como o Brasil, que necessita de carece tanto deles.
Marielle Franco não era corinthiana, mas era uma mulher negra da favela do Rio de Janeiro que lutava por esses princípios, que foram violados pela confusão de um grupo de antidemocráticos. Quando Gustavinho mostrou sua camiseta, após o título da Copa Ouro, não se viu nenhuma defesa partidária ou eleitoral, apenas um pedido por justiça, para que um assassinato político não terminasse em impunidade. Era uma demanda simples, sem nada que pudesse significar algum viés, a não ser na cabeça daqueles que já estão tão doentes pela polarização política do país que qualquer mera menção a quem discorda passa a ser vista como ofensa ou ataque.
A camiseta censurada no Memorial era uma expressão de humanidade. Se Marielle fosse uma mulher de direita assassinada da mesma forma, seria igualmente recordada, e a punição aos seus assassinos igualmente necessária. Como também é recordada a morte de Anderson Gomes, que embora trabalhasse para a vereadora, não era necessariamente uma pessoa de esquerda. Assim como Amarildo Dias, Cláudia Ferreira, Evaldo dos Santos e tantos outros trabalhadores assassinados. Tantas vidas ceifadas, de gente de esquerda, de direita, ou pessoas neutras. Todas elas importam, e todas merecem a mesma justiça.
Aquela frase aparecer na camiseta do Corinthians não foi um acaso. Quem já saiu pelo mundo e sabe o que o nosso clube significa entenderá que em nenhuma outra vestimenta essa mensagem teria tanta força.
Mais do que os títulos mundiais (e não que eles não sejam importantes), o que nos distingue dos demais clubes do planeta inteiro é a nossa ligação com a luta pela democracia em tempos de ditadura no Brasil. Todo aquele que conhece a história da Democracia Corinthiana passa a respeitar nossa instituição mil vezes mais. Quando o Gustavinho usa uma camiseta perguntando “Quem matou Marielle?”, ele nos ajudou a preservar esse respeito que ganhamos ao longo do tempo, e a ser coerentes com esse legado, com uma frase tão simples, e ao mesmo tempo tão marcante, quanto a que dizia “Dia 15 vote” ou quanto a inesquecível faixa do “Ganhar ou perder, mas sempre com DEMOCRACIA”.
Porém, a diretoria do clube decidiu se acovardar diante das ameaças dos que dissimulam seu viés político com essa falsa defesa da neutralidade, que no fundo é uma defesa da desumanização, e um ataque aos mais importantes valores democráticos de uma sociedade. Essa retórica vazia de um Corinthians apolítico não é favorável e sim contrária a esses valores. É a antidemocracia Corinthiana ganhando sua primeira batalha, e envergonhando toda a nossa nação.
Democracia é outra coisa: um modelo onde as diferenças convivem juntas, se respeitam, e repudiam a violência e a morte por razões políticas, venha de onde venha, seja contra os seus próprios ou contra adversários.
Basta recordar que a Democracia nunca foi um movimento apolítico, pelo contrário, tinha gente de esquerda (como Sócrates e Wladimir, embora eles nunca tenham tido cargo público) e também de direita, como o Biro-Biro, que foi vereador em São Paulo entre 1989 e 1992, eleito pelo PDS (atual PP, que na época era comandado por Paulo Maluf e que já teve entre seus militantes a ninguém menos que Jair Bolsonaro).
Depois, só nos resta ver o que acontece quando se difunda além fronteiras a informação de que o clube que viveu a gloriosa Democracia Corinthiana hoje é adepto da censura a uma expressão contra a impunidade por um assassinato político. Ou alguém acha que este caso não terá repercussão? Ou ninguém imagina qual será o resultado dessa notícia para a imagem do clube no Brasil e no exterior?
Ainda está em tempo de trazer de volta ao nosso Memorial a camiseta que engrandeceu o clube naquele dia 22 de junho de 2018. Ainda está em tempo de mostrar que o Corinthians ainda é o clube que se distingue no mundo pela sua defesa dos valores democráticos, e que essa censura foi apenas um lapso, que pode e deve ser corrigido. Antes que se torne mancha que nos marcará para sempre, da pior forma.
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.